(retirado do livro “Diálogo com um executor” de Rubens Saraceni)
Eu entrei no velho ônibus e me recostei no fundo. Dali comecei a ouvir um vozerio insuportável, mas não via ninguém conversando. Todos mantinham as bocas fechadas, mas eu os ouvia. Prestei atenção num casal à minha frente, e ouvi seus pensamentos.
- Sim, são seus pensamentos! - exclamei eu, esquecendo-me de minhas dores.
Só então eu despertei para um novo estado de consciência. Ouvi muitas coisas que traduziam a verdadeira personalidade daquelas pessoas. Ouvi pensamentos de ódio, amor, desejo, dúvidas, aflições, saudades, tristezas, alegrias, planos para o futuro e remorsos por planos que não foram realizados.
Então, eu parei e pensei: "Imagine se alguém me ouve, afinal aqui deste lado a voz audível é a da consciência. De minha mente não sairá um único pensamento. O negócio é, quanto mais silêncio, menos é revelado".
Passei a viagem toda observando as pessoas que viajavam naquele ônibus. Vi um rapaz puxar conversa com a senhora ao seu lado, mas o que ele falava não era o mesmo que pensava. Enquanto dizia estar cansado da viagem, alimentava o mais ardente desejo por ela. Observava dissimulado suas belas formas, e mais ainda o insinuante decote do seu vestido. Eu até aproximei-me um pouco mais para não perder nada do que diziam, ou pensavam, os dois, e devo dizer que me diverti com a nova possibilidade que se me abriam os encarnados.
Tudo aquilo era divertido. Eles não sabiam que os espíritos dos mortos podiam ouvi-los nos seus conscientes.
Devo dizer também, que a luz irradiada pelo rapaz mudou de coloração: de um branco azulado, passou a um tom rosado, quase vermelho. "Acho que isto tem a ver com o desejo" - pensei eu.
"Mas e ela? Por que não altera sua luz irradiada? Será que não o deseja também?"
Pouco depois eu ouvi um pensamento que me esclareceu:
"Este chato está me incomodando com sua conversa tediosa. Será que não notou que está sendo muito tolo com este diálogo que encobre suas verdadeiras intenções?"
Então era isto! Ela não estava muito interessada em dar-lhe atenção, e só o fazia por delicadeza e boa educação.
"Idiota" - pensei eu.
Mal eu voltava ao fundo do ônibus, e dois espíritos surgiram ao lado do rapaz. Gargalharam muito, e logo outros juntaram-se a eles. Entre "homens" e "mulheres", havia meia dúzia deles, e começaram a acariciar tanto o rapaz quanto a senhora ao seu lado. Pude ver como o rapaz tornou-se rubro com a luz irradiava pelos seus desejos, e como a mulher também se alterou muito, enquanto lhe acariciavam suas partes íntimas, seios e rosto, num frenesi sem paralelo. Ela estava alterada pelas carícias que os espíritos lhe faziam.
"Então é isso" - pensei eu, mas calei-me. Não queria despertar-Ihes a atenção, e sim observar como seria dali por diante. A senhora tornou-se mais receptiva às investidas do rapaz, e agora tornava-se rubra também. Era o desejo atiçado pelos invisíveis que a atingia em cheio.
Para mim, tudo era espantoso. Agora eu sabia como muitas ações impensadas tomavam corpo de um momento para outro em nossas mentes. Isto explicava muitas coisas até então desconhecidas para mim.
Como anoitecia e o ônibus fez uma parada para os passageiros lancharem, eu acompanhei os dois à distância, e pude ver e ouvir o desenrolar do envolvimento praticado pelo grupo de espíritos à volta deles. Outros espíritos também os observavam à distância, sem nada fazerem. Eu já identificava um espírito de um encarnado, e mantinha-me calado pois eu também era observado por eles.
O rapaz tornara-se insinuante, e a mulher já era receptiva a ele. Eu os observava como um pesquisador atento ao objeto de seus estudos.
"Preciso me esclarecer dos procedimentos deste lado" - pensei - "Aqui a coisa é mais interessante que na carne."
Vi quando voltaram ao ônibus e ela sentou-se no lado da janela, e ele no lado do corredor. Aquilo já prenunciava algo, pois a escuridão seria ótimo argumento para uma ousadia maior. E foi o que aconteceu. Induzida pelos invisíveis, à mulher se deixou acariciar pelo rapaz em dado momento, e vi lampejos espargirem-se dela. Os invisíveis os absorviam como um mata-borrão faz com a tinta de escrever que eu usava quando na carne. Eles também alcançavam uma intensidade muito elevada de prazer. Quanto mais os dois se envolviam nas carícias que provocavam prazer, mais vibração eles absorviam. Vi quando um espírito masculino e um feminino deram vazão aos seus ,desejos apenas com a vibração que absorviam dos dois encarnados. Seria divertido tudo aquilo, se não fosse a bestialidade e a imoralidade na forma de se obter o prazer. A tudo eu observava. Vários espíritos tentaram repreendê-los, mas foram afastados quando um deles puxou de um punhal afiado que trazia oculto sob sua roupa, e avançou em sua direção. Como por encanto, todos sumiram.
Novamente a sós, os seis voltaram, à carga sobre os dois encarnados, e vi como ela permitia que ele a acariciasse com maior ousadia. Os lampejos de prazer emitidos pela mulher eram absorvidos por aquelas almas desregradas e degeneradas com tal voracidade, que elas penetravam eu seu corpo carnal, a ponto de uma das invisíveis praticamente assumir a sua forma. Eu já não sabia dizer se era à encarnada ou à invisível que o rapaz acariciava e beijava: ambas estavam embaralhadas, e às duas a vibração rubra atingia.
Creio que, naquele instante era mais à desencarnada que ele sensibilizava, porque enquanto a encarnada mantinha-se em silêncio e tinha alterada apenas sua respiração, a invisível emitia gemidos de prazer intenso. "Isto é mais interessante que eu imaginava" - pensei
Acho que ela atingiu um intenso orgasmo, porque logo saiu e deu o lugar a outra. A mistura de invisíveis era de tal ordem, que eles se sucediam nos envolvimentos de prazer muito rapidamente.
A tudo eu observava em silêncio. Não queria ser incomodado, e me interessava conhecer tudo aquilo. Por volta das onze horas da noite, o ônibus chegou ao seu destino, e todos os passageiros começaram a descer.
Vi quando os dois desceram envolvidos pelo grupo invisível. Perto da rodoviária havia um hotel e os dois dirigiram-se para ele, alugaram um quarto como se fossem marido e mulher e subiram ao quarto rapidamente. Em instantes, estavam entregues às mais ousadas carícias e a um rápido tirar de roupas. Eu não fui notado pelo grupo invisível e pude ver tudo através da parede do quarto. Vi como se amavam, tendo os invisíveis como parceiros de leito incorporados aos seus corpos. Aquilo foi o suficiente para que eu descobrisse que eles poderiam modelar-se aos corpos dos encarnados, e vibrar tanto quanto eles.
"Então é isto" - pensei - "É assim que os encontros clandestinos acontecem. E eu jamais saberia disso se não fosse um invisível também."
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